domingo, 17 de abril de 2011

Direitos ameaçados e uma resolução que pode não existir

Informe  da jornalista e cientista social Telia Negrão, Rede Feminista de Saúde/ RSMLAC e da jornalista Alessandra Nilo, Gestos/

A um dia de finalizar a 44ª reunião da Comissão  de População  e Desenvolvimento das Nações Unidas ( 11 a 15 de abril, em Nova Iorque) que discute sobre o tema da Fertilidade, Direito a Saúde e Desenvolvimento, há motivos para fortes preocupações. Esta reunião tem como referencia a histórica reunião de Cairo, de 1994, quando ali se aprovou o Programa de Ação que em 2009 fez 15 anos, estabelecendo um novo paradigma na compreensão da saúde e reprodução como um campo de direitos e reconheceu como universal o acesso a saúde sexual e reprodutiva.
As mulheres e meninas são sem duvida as maiores beneficiárias e por conseguinte as mais prejudicadas quando se questiona o Programa de Ação de Cairo. Temas fundamentais como casamentos forcados de meninas, mutilação genital, violência sexual, aborto inseguro, atenção a sexualidade, gestação, parto, puerpério, regulação da fertilidade, são temas deste programa que uma vez mais se discute.
Assim como naquela reunião de 1994, uma vez mais o movimento feminista de várias partes do mundo, mas particularmente da América Latina trabalha para direta ou indiretamente influir nas decisões. No caso brasileiro, duas feministas, Telia Negrão (Rede Feminista) e Alessandra Nilo (Gestos) atuam como parte da delegação oficial, portanto incluem-se nos debates e propostas apresentados pelo estado brasileiro. Um grupo de feministas de varias regiões do mundo trabalha no apoio para sustentar a linguagem de Cairo e as propostas de conteúdo há vários meses e se mantém ativo do lado de fora. Sem este suporte seria difícil imaginar a ação de convencimento que se realiza entre delegações.
 O objetivo é claro: impedir que tenha sucesso a estratégia montada pelo Vaticano de trucidar, retroceder tanto quanto possível nos direitos reprodutivos, mas em especial nos direitos das mulheres. Suas propostas são de negação do direito a igualdade, de desfrute de direitos humanos, de exercício de autonomia sexual e reprodutiva, de desqualificação de todas as propostas apresentadas pelo campo não conservador.
Durante três dias trabalhou-se intensamente na discussão do texto inicialmente apresentado pelo  facilitador da Comissão, o belga Christophe de Bassompierre, cujo conteúdo reafirma Cairo 94 e seus seguimentos, e se referencia especialmente na Resolução de 2009. Das 36 propostas originais, entre questões de princípios e de operacionalização, resultou em cerca de 90 parágrafos e emendas de linguagem, a maioria dos quais propostos pelo campo retrógrado da igreja católica. No entanto contam com aliados fiéis, como o bloco árabe, capitaneado pelo Egito (triste ironia!), Malta e Federação  Russa, e da America Latina conta com o apoio do Chile. A representação do Ira atua para argumentar e defender tradições culturais, retirar dos textos a palavra mulher, menina e adolescente, não aceita o conceito de gênero. A única exceção que faz em direção contraria é quando se trata de temas de desenvolvimento.
Desde o segundo dia dos trabalhos buscou-se a formação de um grupo latinoamericano, constituído pela Argentina, Uruguai, Republica Dominicana, México, Peru, num total de nove, que se ampliou no terceiro dia com o apoio da Colômbia e Guatemala, sob a evidente liderança do Brasil. Tem sido um trabalho de extrema habilidade e busca de consensos, que ora amplia o grupo, ora reduz de acordo com os limites e reservas de cada país e se alia com o bloco nórdico, e europeus como Reino Unido, Alemanha, Espanha, além dos Estados Unidos cujo silencio é compensado pelas manifestação de apoio as melhores propostas em defesa dos direitos humanos.
O continente africano que no primeiro dia se apresentou em bloco, a partir da segunda sessão se fragmentou, mostrando as diferentes posições dos países. A África do Sul e Zâmbia sustentam integralmente Cairo, enquanto outros países tristemente advogam contra os interesses das mulheres africanas, questionando a relação entre mutilação genital e infertilidade e violência, o enfoque de gênero no enfrentamento da epidemia do HIV e a relação entre níveis educacionais e acesso a direitos e cidadania.
Bastaria um dia para perceber o quanto alguns se aproximam e outros se distanciam daquelas e aqueles que dizem representar. Na verdade, muito longe da realidade de cada país, advoga-se, na maioria dos casos, a partir de idiossincrasias. As mais importantes declarações, como de Beijing (1995) se submetem a “avaliação” se devem ou não ser reafirmadas. Por conseguinte, o tema do empoderamento das mulheres é posto em hierarquia inferior ao tema de família, ao estímulo ao casamento. O acesso aos métodos modernos de contracepção, e até mesmo a educação sexual são postos na berlinda. Serviços de saúde sexual são substituídos por serviços básicos de saúde e não há espaço para indivíduos, apenas casais.   
Claro está que de hoje até amanha, quando ao amanhecer uma nova resolução deverá estar aprovada varando madrugada, um cabo de guerra se manterá estendido. A tendência é o maior fortalecimento de blocos e também fechamento de posição. O Brasil, através do seu representante diplomático Fabio Faria, já comunicou que o limite do país é a Resolução  de 2009, que reafirmou Cairo, e que não recuará uma linha. Há outras posições que consideram que melhor do que uma má resolução, é nenhuma resolução e manutenção das anteriores. Uma resolução é o que ilumina a ação no período entre uma e outra reunião de avaliação, com base em áreas temáticas. E a próxima possivelmente enfocará o tema das migrações, que incomoda por razões diferentes “os do norte e os do sul”. Novamente está o movimento feminista, pois afinal, as mulheres e meninas migrantes são as maiores vítimas nas violações dos direitos humanos dessa população.
Uma coisa nos garantem as/os mais experientes neste campo, aqui presentes: a resolução a ser aprovada (ou não) não poderá recuar do Programa de Cairo/ 94. No entanto, neste tempo de disputa por direitos no mundo, a ênfase vitoriosa fará toda a diferença.
 (Telia Negrão, Rede Feminista de Saúde/ RSMLAC e Alessandra Nilo, Gestos/ Llacaso, Delegadas à 44ª Reunião da Comissão  de População  e Desenvolvimento das Nações   Unidas, NY, 11 a 15 de abril de 2011).

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